parabéns,
Hoje meu pai faria 56 anos, se estivesse aqui. Nunca mudei minha rotina por esta data e hoje em dia nada mudou. Me pego reflexiva, apenas. Olhando com cuidado e curiosidade para o meu passado. Um escrutínio que nunca me permiti fazer.
Cada ano era uma forma diferente de viver essa data. Havia aqueles anos em que minha mãe ligava um dia antes para ‘lembrar’ de desejar feliz aniversário a ele, como se eu tivesse esquecido. Eu nunca esquecia. Acontecia que algumas vezes estávamos brigados. Ele bebendo muito, brigando mais ainda, despejando palavras crueis em quem quisesse e não quisesse, em quem passasse e em quem nem estava ali para se defender. No ano que isso acontecia eu passava o dia todo lembrando que era aniversário dele, comentando com amigos que era aniversário do meu pai, mas não ligava para ele. Em outros anos isso tudo acontecia mas a consciência pesava tanto que eu ligava para casa à noite para falar com ele. Quase sempre ele não estava lá, mas em algum bar.
Outros anos, aqueles nos quais conseguíamos manter a paz, ligava para ele perto do almoço ou no meio da tarde pois sabia que eram os horários mais certos de encontrá-lo em casa, e o diálogo funcionava mais ou menos assim.
— Oi, painho. Feliz aniversário, viu?
— Cadê a ‘bença?’
— ‘Bença’, painho.
— Deus te abençoe… Hum.
— Feliz aniversário, viu?
— Tá bom. ‘Brigado’.
— Seja feliz e crie juízo, ok?
— Hum. Tá bom.
— Pare de beber, pai.
— Hum. Tá bom, tá bom. Tchau.
— Tá bom. Fique com Deus, viu?
— Você também. Tchau.
— Tchau. Um xêro.
— Outro xêro… Olha, tu vem em casa quando?
— Não sei. Acho que semana que vem.
— Ah sim. Então tá bom.
— Porque?
— Nada. Posso perguntar mais não, é?
— Pode, menino.
— Tá bom. Tchau.
— Tchau.
Existiam também os anos em que minha mãe me ligava pedindo para dar uma lição de moral nele em decorrência de seu aniversário. Ela dizia, “é aniversário do seu pai, fale com ele. Diga pra ele melhorar. Diga que ele pare de ficar gritando, que eu não mereço isso. Diga pra ele ser uma pessoa melhor. Eu falo todo dia mas ele nunca me ouve” O máximo que eu conseguia dizer era a conversa acima. Não sei dizer o mal estar que me causava ter que dar lições ao meu pai. Era uma inversão de papeis que eu nunca consegui engolir direito. Até em seus últimos momentos cuidar dele para mim demandava uma energia gigante como filha. Eu cuidava com todo esforço que eu poderia fazer mas ainda me parecia pouco, era como se eu não conseguisse ser filha direito para ele, era como se eu nunca tivesse sido filha para ele. Eu era só uma criança que morava na mesma casa. A criança pela qual a mãe precisava inventar as mais diferentes histórias para que ele desse dinheiro para material escolar, por exemplo.
No nosso último dia dos pais juntos o presenteei com uma camisa do seu time favorito. Ele tinha voltado a beber mas estava tentando parar por conta própria novamente, negando que precisava de ajuda como sempre fez, mentindo para si mesmo ao se convencer que conseguiria, sim, parar quando bem entendesse. Ignorando o fato de que sua doença avançava na velocidade da luz (figurativamente). Ele chorou com o presente. E aquelas lágrimas de emoção causaram algo em mim, mesmo eu já tendo a certeza de que ele ia gostar. Antes de comprar perguntei a minha mãe o que ela achava e ela disse que seria melhor comprar algo que servisse para ele, não uma camisa de time que não serviria para nada. Nem deveria ter perguntado a opinião dela, afinal. De qualquer forma, comprei mesmo assim. Naquele dia algo desbloqueou na minha química cerebral e olhei para trás vendo toda minha história com ele. Uma história de ausências, discussões e solidões, cercados por cada vez mais raros momentos bons até não existir nenhum momento bom. E nisso eu vi que o passado já tinha ido. Eu não tinha mais motivos para me apegar àquele passado longínquo. Desde esse dia eu só fui filha. Só tentei fazê-lo sentir-se pai. E foi o que fiz até seu último momento.
Não acredito em vida após a morte. Não acredito em céu ou inferno. Não acredito em pagar os pecados em um plano diferente. Não acredito em punitivismo do além, de maneira geral. Para mim, a morte é o fim. Da matéria, da ‘alma’, de tudo. Ficam lembranças em quem ficou. Mas quem foi, foi.
A frase colhemos o que plantamos me incomoda, mesmo sendo verdadeira com ressalvas. Há uma meritocracia implícita que me causa estranheza. Você quer dizer então que meu pai queria colher sofrimento quando plantou ausência e exageros? Eu diria que você está redondamente enganado.
Me peguei acreditando em céu após a morte dele.
Então hoje eu desejo feliz aniversário aí no céu em que você está. A vida te puniu porque você puxou certas cordas sem perceber. Você não conseguia ver que eram as cordas erradas. Eu acredito nisso. E isso não é pintar você de santo. Isso é reconhecer que seus erros fizeram profundas feridas em muita gente, mas que nunca foi tua intenção. Tenho certeza que tua ressaca moral pós bebedeira te lembrava isso todos os dias.
—
Oi, painho. Feliz aniversário, viu? Crie juízo (mas sei que já, finalmente, criou).