“Uma Vida Pequena” — Uma ode às cruéis limitações humanas

Ficção de má qualidade
5 min readJul 8, 2020

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Uma Vida Pequena (capa)/Grupo Editoral Record

A primeira vez que li Uma Vida Pequena (estou relendo para capturar melhor o que senti), a leitura me levou a achar que o livro seria um encontro de narrativas de quatro amigos tentando construir uma vida numa cidade grande e cheia de oportunidades, tentando “ganhar a vida” de alguma forma, após a faculdade, com os dons que acreditavam ter e com a educação que passaram anos conquistando. Percebi logo de início como Hanya Yanagihara constrói um mistério acerca de Jude, um personagem que desde as primeiras páginas é mostrado como alguém que sofre de não-explicadas dores e que, aparentemente, teve uma infância difícil, sendo órfão, que nenhum dos amigos sabe sobre, e que, por assim dizer, eles não têm “permissão” de mencionar ou questionar sobre.

De fato, a narrativa começa introduzindo a história dos três amigos, Williem, JB e Malcolm; a realidade sobre suas vidas familiares, suas inseguranças, suas aspirações, seus desejos, medos, inseguranças, e um tanto quanto de suas personalidades. A autora conduz a narrativa em terceira pessoa, cada amigo por vez, às vezes mais de um amigo por capítulo ou subcapítulo. Existe uma voz do livro que é narrado e descrito em primeira pessoa, em forma de cartas (ou relatos) para um dos amigos, falando impressões do grupo e principalmente impressões de Jude. Nas vozes dos três amigos, é que vamos aos poucos descobrindo pedaços de quebra-cabeça a respeito de Jude.

Fiquei um pouco incomodada de ler resenhas e ver vídeos de reviews sobre a obra, por achar que iria atrapalhar minha visão pessoal sobre a trama, até porque iniciei zerada, apenas sabendo que foi um livro bastante premiado no ano de seu lançamento (2016), porém conforme avançava na narrativa, precisei checar no “mundo exterior” o que de fato pensavam as pessoas sobre o que estava acontecendo ali; sobre o que estava sendo “me” dito e sobre a reação da crítica e de outras pessoas. Por que? A história começa a seguir por caminhos sombrios, brutais, afunilando a narrativa (e isso eu percebi quando na metade do livro e também quando fui ler uma resenha específica a respeito, que postarei o link mais a frente) e se tornando uma descrição detalhada sobre a vida de Jude. Conforme as páginas avançam, ao contrário de boa parte do seu início, onde tínhamos visões de Jude a partir das visões dos amigos, vemos e conhecemos mais sobre a história desse tão controverso e complicado e extremamente quebrado personagem.

A partir disso, a história se desenvolve por caminhos que talvez não imaginávamos que seriam tão viscerais e crus. Existe um peso tremendo que eu não esperava receber, e por vezes me vi parando a leitura, respirando, procurando opiniões para tentar embasar aqueles sentimentos conflituosos e perturbadores que eu estava sentindo, tentando entender por que a autora decidira tornar tudo tão enormemente gráfico e detalhado; sofrido, pesado, violento.

Após ler as mencionadas resenhas de leitores e crítica especializada, e também entrevistas com a autora, comecei a entender um pouco mais a motivação da mesma ao construir uma história tão magistralmente bem escrita e bem conduzida, mas também tão incrivelmente dolorosa. Existem diversos flashbacks, inclusive flashbacks dentro de flashbacks, até mesmo dois ou três flashbacks diferentes dentro de um mesmo parágrafo logo. Até então, eu não havia lidado com esse estilo de escrita, que se torna tão pessoal e intimista, que me deixou, sim, espantada com o nível de narrativa que a autora conseguiu inserir em toda a história.

A opinião do público se divide bastante. Há quem goste, há quem ame, há quem odeie e, inclusive, há quem ache a história toda “patética” (que inclusive foi a opinião de leitor mais arrogante e fora de contexto que vi, o que me fez criar antipatia imediata pelo autor deste review específico). Eu, particularmente, passei as semanas que li, sonhando com os personagens; procurando saídas, procurando soluções, procurando “curas”, o que acaba sendo uma ironia, devido a tudo que se passa naquelas páginas e ao sentimento dos personagens. É uma história dura, crua, perturbadora, que não se deve ler sem estar com a mente preparada para vários gatilhos bastante poderosos.

Uma Vida Pequena diz bastante sobre seres humanos, sobre coisas que não conhecemos, ou que até conhecemos, mas que nos esmaga com sua intensidade, com a transformação, com a extensão de danos que traumas físicos e psicológicos podem causar e como podem afetar a vida de uma pessoa. A autora disse que a interessa bastante como traumas podem afetar as pessoas, principalmente a vida de homens, e ela conseguiu, de forma que quase chega ao limiar do apelativo, mostrar com crueza coisas que não esperávamos nos deparar ao iniciar a leitura. Ela muda tudo, ela bate na nossa cara, ela mostra o que talvez não quiséssemos ver (ou ler). Inclusive, ela menciona em várias entrevistas como já se deparou com algumas histórias, até de amigos, que se aproximam bastante com várias situações ocorridas em suas páginas, que foram escritas em 18 meses, num estado “febril”, por noites ao retornar do trabalho (isso ela menciona em entrevista ao The Guardian). É uma busca pela normalidade, pelo comum, que foi destruída, mas que é tentado constantemente atingir. “Quer ser normal, tudo o que sempre quis foi ser normal, mas a cada ano ele se afasta mais e mais da normalidade.”

Por fim, e, em resumo, Uma Vida Pequena é uma comovente história de amizade e confiança, de superação de forma que não esperamos, de tentativa, de determinação, de irmandade, de trauma profundo, de marcas aparentemente eternas. Vários personagens são apresentados ao longo da narrativa, além dos quatro amigos principais, para que fique mais enfático como as relações humanas são quando amigos decidem tornar-se uma família, ligados simplesmente pelo sentimento que possuem uns pelos outros, pela aceitação e pela disposição em continuar ali, continuando a alimentar aquele sentimento e aquelas relações tão profundas, mesmo que às vezes pareça quase impossível continuar tentando. Como a autora menciona, ela quis construir uma espécie de conto de fadas, e como li em uma resenha, é uma espécie de conto de fadas às avessas.

“Você pode não entender agora, mas um dia entenderá: o único segredo da amizade, acredito eu, é encontrar pessoas melhores que você, não mais inteligentes, não mais bacanas, mas sim mais bondosas, mais generosas e mais piedosas, e tentar dar ouvidos a elas quando dizem algo sobre você, não importa o quanto seja ruim, ou bom, e confiar nelas, o que é a coisa mais difícil. Mas também a melhor.”

Uma Vida Pequena é uma obra de ficção americana lançada no ano de 2016, contendo cerca de 784 páginas em sua versão português do Brasil. Concorreu e foi finalista de diversos prêmios literários importantes e dividiu a opinião da crítica especializada e dos leitores em relação ao seu enredo intenso, brutal e devastador. Entretanto, é de opinião geral a maestria na qual a autora conduz a história e o brilhantismo de sua escrita, exaltando a narrativa utilizada.

Hanya Yanagihara, é uma norte-americana do Havaí. Tem 40 anos e mora em Nova York.

A foto de capa faz parte da série de fotos do fotógrafo Peter Hujar, que captura vários homens no momento do orgasmo, chamada “The Orgasmic Man”.

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ficção de má qualidade (e impressões literárias meio pobres)

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